13 de agosto de 2013

Fomes Acordadas...


Perdoem-me o texto longo. Quis cortá-lo e podá-lo, quis colocá-lo numa fôrma e moldá-lo numa forma mais rápida de ser lido, mas ele gritou e protestou. É um texto rebelde, e insistiu que era assim que ele queria nascer para o mundo, livre, sem cortes e sem censuras. Recusou-se a ser diminuído já ao nascer. Satisfiz-lhe, pois, o desejo...
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Súbito, a vida tropeçou e caiu... Já acostumado a cair de grandes alturas, ele deu de ombros. Resoluto, sentou-se num canto escuro, e esperou a luz voltar. A luz sempre volta, ele sabia. A solidão era absoluta. Mas a solidão também passa. Sem medos, ou maiores preocupações de estar perdendo tempo, deu de ombros, sentou e esperou o tempo passar. Enquanto esperava o dia raiar, os amigos - como sempre acontece nas noites escuras e frias -, não estavam lá. Ele riu, e deu de ombros. Melhor assim. Outras experiências similares já lhe haviam ensinado uma lição preciosa. Atrasa muito a viagem - percorrer certos caminhos de vida – em má companhia. É na solidão que o homem renova a sua alma. É na escuridão que reina sob a terra, longe dos holofotes, que a semente solitária começa germinar seu destino de ser árvore. Sem pavores, nem rancores no coração, ele contemplou demoradamente o imenso vazio e silêncio que a sua queda gerou ao seu redor. De fato, a solidão era absoluta. Deu de ombros. Ele sabia que enquanto possuísse a liberdade da sua própria alma, nenhuma solidão lhe seria completamente absoluta. Tinha ainda a sua imaginação... Acendeu uma luz fraca, e em seguida, ascendeu o espírito, se é que me entendem, e deu um tempo na vida. Abriu mão da correria do tempo, dos dias e das horas. Sem pressa, passava o tempo consertando coisas velhas dentro do coração, cosendo a alma, já tão rota, já tão sofrida... Lendo Nietzsche, Artaud, Dostoiévski, Schopenhauer, Joyce, Virginia Woolf, e Augusto dos Anjos... Escrevendo na escuridão da noite, coisas que destruía ao amanhecer. E lá fora, o tempo passava sem parecer que passava. E às vezes, o tempo voava... Outras vezes o tempo se arrastava... Como uma torneira velha e mal fechada sobre uma pia cheia de pratos sujos, o tempo gotejava. Ele dava de ombros. Havia tantas urgências fremindo dentro do peito, e não é bom dar prioridades para as urgências neuróticas de uma pia cheia de pratos sujos, quando se tem dentro do peito uma alma que pede lapidação. E o tempo ia passando, e nos pedaços inúteis da alma, ele achava inspiração, e brincava de fazer poesia. A um pé da boca do abismo, dançava sozinho na escuridão da noite. Brincava de cair... Dava cambalhotas na frente das trevas ameaçadoras. Afrontava a escuridão. Assustava os que não tinham vocação, nem imaginação, para deixar o espírito voar livre sobre as nuvens, em dias tempestuosos. Quem, de longe o via assim, dançando numa corda bamba, nada entendia e julgava-o louco. Nietzsche cochichava em seus ouvidos, e dizia que eles não estavam ouvindo a música. Ele ria, e se elevava cada vez mais alto no ar, e eles diziam que ele era minúsculo e inútil como um grão de areia, tão alto seu espírito pairava acima da montanha... E os dias, dentro da noite, passavam... E, quando ele recolhia pelas praias desertas da sua alma, os pedaços do naufrágio da sua existência, se nada encontrava de valor... Dava de ombros. Tomava umas limonadas, se é que me entendem.
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De uns tempos para cá, a vida tinha dado para zombar dele. Ele aceitou o desafio. Tristeza que nada! Não se deixaria vencer pelas misérias da existência. Submerso nas profundezas do rio de Heráclito, escondido do tempo que ia passando sem o ver passar, ele ia passando, mudando, renascendo, de dentro para fora. Florescendo, melhor dizendo. A vida ia passando, e ele se transformando na passagem da vida, que passava. A vida estava mudando, e ele mudando na mudança da vida, que mudava. E também o tempo ia passando, escoando lentamente para a eternidade, lavando-o, curando-o, sarando-o, purificando-o de si mesmo. Até que um dia, no silêncio do coração, ele pressentiu que alguma coisa nas profundezas da alma estava brotando, enraizando nos seus ossos, atravessando de dentro para fora a sua pele, incendiando o seu ser, e sorvendo em abundância a luz da vida... De fato, era a vida não vivida que se preparava para nascer... O velho destino estava se transformando em outro destino... Uma festa teve início nos abismos do seu ser, e um sorriso brotou em seus lábios.
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Ah,... Tanto tempo já passou desde aquele dia em que ele entrou no deserto, e desafiou a escuridão da noite... Apesar do tempo decorrido, parece que foi ontem que ele entrou no deserto... Habituou-se à aridez, fez-se irmão da escassez. Nada lhe falta. Nada lhe sobra. Está completo... Creiam-me, uma noite bem vivida no vale da escuridão, vale por mil dias passados na superfície da vida, inconsciente até do sol que ilumina, e da comida que alimenta, e das palavras que fala. Uma noite insone faz mais bem para a alma, que se aprofunda em si mesmo, que uma noite de sono comprado na farmácia mais próxima. O tempo passou, e as horas correram pelo meio da noite, levando embora a escuridão... E o dia amanheceu... E a escuridão feneceu... Veja!... Lá vem ele, saindo radiante do deserto que o devorou, e agora o regurgita novamente nos braços da vida. Não o reconhecem? Não é de estranhar, tanto tempo ele ficou longe. Está tão mudado... Quem ainda guarda somente memórias antigas dele, e o vê assim, tão mudado, não tem como reconhecê-lo mais. Ele é outro, para vós outros... A metamorfose findou (outra em breve começará). Agora ele não tem mais feridas abertas, nem no corpo, nem na alma. Tem cicatrizes saradas... Tantas e tantas... No corpo e na alma. Mas elas não doem, nem coçam, nem estão cheias de memória pesadas e rançosas. Sua alma está leve, calma, tranquila, e livre... Ele é estranho para vós? Não o temam, pois vós sois conhecidos da alma dele, pois ainda sois os mesmos de quando ele partiu para o deserto. Nada mudou em vós, como mudou nele. Corram! Corram! Vão até ele. Estendam-lhe vossas mãos vazias de transformação interior – Oh, homens vazios de autoconhecimento! - pois dos desertos profundos que atravessou, dos infernos que cruzou, das decepções que sofreu, das traições que sobreviveu - e das mortes que enfrentou -, e dos desesperos em que mergulhou, ele traz muitos tesouros de sabedoria... Vejam!  Por onde ele passa, empresta a sua alma aos desalmados, que o retribuem com sorrisos e abraços... Ah! O dia já amanheceu! O céu está azul e ensolarado. Abram as portas, que aí vou eu! Minha alma tem tantas fomes acordadas...
V.B.Mello.