29 de agosto de 2013

Cenas do Cotidiano - Devorados pelas Trevas...

                                                         Deixai, ó vós que entrais, toda esperança! (Inferno – Canto III)
Dante Alighieri
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Com a alma pesada de tanta treva, ambicionou sobremodo encontrar e possuir também uma luz interior, para chamar de sua. Mas não conhecia a alquimia de transformar as trevas em luz, nem a arte de transmutar o mal em bem. Eis então, que certo dia, por mero acaso, passando por um caminho estreito, muito antigo e muito distante, ouviu falar de tal homem jovem, que ensinava sobre o amor. Venceu a multidão que rodeava o homem, e parou para ouvir. Mas o homem tinha uma aparência por demais simples, o que o decepcionou. Forçou as vistas para ver melhor, e não viu encanto algum. Só mais um louco lançando palavras ao vento... Ele pensou. Mas a visão direta dos olhos do homem nos seus olhos, se é que de fato era mesmo um homem, pois - agora ele via, ou pensou ver – o tal homem tinha a face de um anjo e palavras divinas, que ele espalhava como sementes de vida sobre a terra seca... Tal visão lhe causou uma espécie estranha de desconforto. Imediatamente, sob o peso de alguma força inconsciente, ele curvou a cabeça, e ouviu pensativamente cada palavra que o homem dizia, e no fim, movido igualmente por uma força inconsciente, zombou de cada uma delas. Pois o homem, isso lhe ficou muito claro, dizia coisas estranhas e sem sentido. Então, não sem grande ira - que se apoderou de todo o seu ser -, se retirou do meio daquele povo, a quem chamou de ingênuo. Contudo, para desgosto seu, as palavras do belo homem enchiam a terra, enchiam o mar e enchiam o ar... De modo que era impossível não ouvi-las. Furioso, ele fugiu para um abismo, e quando já se aproximava novamente das fronteiras do seu deserto, exasperado, tapou os ouvidos, porque as palavras do belo homem ainda ali lhe chegavam aos ouvidos. Se dentro ou fora da alma, ele não sabia mais dizer, as palavras do belo homem estavam sempre lá, em algum lugar dentro dele, que ele não sabia dizer que lugar era..., ecoado, ecoado...  Bem-aventurado os humildes de espírito... Bem-aventurado os que têm fome e sede de justiça... Tomou de pedras e as atirou contra o belo homem, escarrou e cuspiu para o lado, fez uma careta de nojo e desprezo, e mergulhou profundamente no deserto; fechou a porta atrás de si, e a noite caiu outra vez sobre ele. Finalmente as palavras do belo homem cessaram... Mas a treva que havia nele, cansada de ser escuridão, queria cada vez mais, ser luz. Uma angústia sem igual fustigou-lhe o corpo e a alma, e ele adoeceu de tanta treva. A ausência das palavras do belo homem havia deixado um vazio incomensurável na alma dele... Desejou a morte, mas a morte não veio. Ela nunca vem quando a gente quer. Sentindo-se absurdamente desconfortável nas próprias trevas, ele bolou um plano infalível para escapar do seu sentimento de abismo.  Roubaria a paz dos outros, assim - pensou -, teria alguma luz e alguma paz. Com esse objetivo em mente, saiu do deserto e mergulhou na vida dos outros, e por onde passava e encontrava alguém em paz, atormentava e destruía... Sua boca proferia maldições e impropérios sem fim... As flores do caminho ele pisava. Aos pássaros ele atirava pedras e prendia em gaiolas, os peixes ele prendia em aquários; as mulheres, ele abusava, e aos velhos e crianças desrespeitava... O céu azul ele amaldiçoava. Esmagar era sua palavra de ordem. Nada respeitava. Nada admirava. E todo lugar aonde ele chegava, desmoronava. Na sua presença a luz se apagava e guerras se travavam. Quando ele chegava a uma cidade, as pessoas diziam: Ai meu Deus! Quando ele partia as pessoas diziam: Graças a Deus! E o tempo passou... Pessoas – estranhas pessoas – começaram a segui-lo por todos os seus caminhos... Quem o via assim, rodeado de tanta gente, facilmente poderia incorrer no erro de pensar que ele tinha muitos amigos, mas não eram seus amigos ou discípulos, aquelas pessoas estranhas... Eram seus cúmplices de destruição da paz alheia, ladrões de luz. Ah, meu irmão! Você não pode imaginar quanta luz eles roubaram, quanta paz eles destruíram! Todavia, a luz e a paz roubada, assim que tomada pela força, esvaia-se no ar – estourava feito bolha de sabão levada pelo vento -, de modo que eles, por mais paz que roubassem, não podiam retê-la em si mesmos. E assim, quando mais luzes eles apagavam, mais em trevas eles ficavam... (pois não sabiam que a luz alheia é também uma forma de iluminar as próprias trevas.) Inconscientes da sua própria miséria, eles continuaram apagando a luz alheia, onde quer que ela fosse encontrada. Nada lhes impunha limites. Antinomistas por natureza, os valores morais e éticos nada significavam para eles. Na vã esperança de que assim a sua luz seria acessa, eles pilhavam a paz alheia sem se importar com quantas luzes apagavam em busca da própria luz, que nunca se acendia. Em seus corações, as trevas e o mal fizeram uma aliança eterna, fizeram juramentos e selaram o pacto amaldiçoando-se com mutuas execrações, e por fim combinaram que, se necessário fosse, apagariam todas as luzes do mundo. Já não eram mais homens, aqueles homens... Mas eis então, que um dia, de inesperado, um fogo medonho se acendeu nas entranhas deles. Era um fogo terrível. Um fogo que queimava e consumia a alma, mas que não a iluminava quando a noite caía. Um fogo destituído de luz. Imediatamente uma fome insaciável, antecedida de terrível crise de loucura e cegueira mútua, se apoderou deles, e eles começaram a se devorar uns aos outros... Conta-se – oh, horror! – que antes deles sumirem para sempre nas trevas que causaram, pois a treva os abraçou e os levou para um lugar aonde luz alguma jamais chega, ouviu-se o silêncio da noite ser quebrado por terríveis gritos e rangeres de dentes e sons de ossos sendo partidos...

V.B.Mello.

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